"Nunca é alto o preço a pagar pelo privilegio de pertencer a si mesmo." Nietzsche

Esqueci-me de ser melhor


Apenas sou

Uma vez me perguntaram algo de uma forma que até hoje eu não identificar se foi por admiração ou por ironia “tem alguma coisa que tu não sabes fazer?”. Queria não ser desconfiada e acreditar completamente na pureza dessa pergunta, vendo-a assim, um elogio. Seja como for, o fato é que não há nada que eu saiba fazer bem feito. Não há nada que eu possa bater no peito e dizer “quero ver fazer melhor que eu”. Nem se quer há nada que eu faça que faça alguém se lembrar de me chamar para fazer. Sou sempre ordinária. Lembro-me da pergunta, outra vez. Não havia entonação sagaz, embora não consiga entender de outra forma que não seja irônica. Eu me desdobro em mil e faço mil e uma coisas, é verdade. Contudo, uso a intuição, o carinho e a curiosidade como mérito, sempre fui assim. Sou amadora nata – do grego, mais vontade que perfeição.
Não sei se conseguirei ser um ponto fora do gráfico, como assim já se referiram a mim, tendo em vista que facilmente as pessoas se aproximam e se afastam de mim sem sentir falta – da mesma forma que se aproximam de um livro bom que leem não entendem muito coisa e largam de mão esquecendo-se ate de mencionar, em um café literário talvez, que já o leu. Não sou lembrada nem esquecida. Apenas sou. Não sou nem boa nem má. Apenas sou. Nem amada nem odiada. Apenas sou. O velho tanto faz. Já me disseram que uma memoria curta é o segredo da felicidade, mas não seria esse um modo egoísta de pensar? Eu não, eu gosto de me lembrar de tudo: gosto de guardar as coisas boas e ruins, gosto de ter datas especiais marcadas em meu calendário, gosto de guardar frases, risadas e lágrimas, gosto de guardar momentos, sonhos, planos, conversas e encontros, gosto de guardar alguns silêncios, alguns abraços, alguns beijos e alguns esquecimentos... Embora de todas as coisas que faço com mediocridade, me lembrar ainda é o que menos sei fazer.
É por isso, exatamente por isso que, mesmo sendo medíocre, escrevo. Escrevo por não haver espaço no HD interno. Escrevo porque as palavras tornaram-se minhas memórias. Provavelmente meus netos irão rir quando eu sentar na cadeira de balanço para lhes contar uma experiência minha e, ao invés de fazê-lo naturalmente, carregar minhas próprias anotações que lerei para eles como quem ler um livro. Pelo menos, não vou correr o risco de cometer equívocos ou ter que inventar estórias de ultima hora para preencher as lacunas da minha falha memoria. Pois, também não sei inventar. Escrevo apesar de medíocre, pois ainda assim, escrevo melhor do que falo. E mais do que isso, escrevo porque meus sentimentos só se tornam livres de mim quando escorrem no papel....
Sou instante... Passou.              



Olhos nos olhos... Eu ri


imagem via google

 Sempre. S e m p r e que eu desejo escrever sobre alguma coisa boa, muito boa, as palavras simplesmente me fogem. Porque será que a tristeza consegue escorrer pelos meus dedos e a felicidade não? Seria ser feliz algo mais indescritível do que ser triste? Não importa. Hoje eu vou escrever sobre essa alegria que invade meu coração, com palavras certas ou palavras tortas. Eu vou escrever sobre como é bom me pegar sorrindo e cantarolando sozinha depois de tanto tempo.
 É tão bom ter a certeza de que eu sou minha, só minha e não de quem quiser. É bom ter a certeza de que verei suas fotos ou as nossas fotos e não sentirei vontade de escrever sobre a dor que me causaste. É tão bom saber que posso me vestir com a tua camisa quantas vezes eu quiser e não vou mais sentir teu cheiro. Agora eu sei que posso me esbarrar contigo ou até mesmo ficarmos a sós... Eu não vou mais ter medo de mim.
Tantos anos se passaram. Tantas cartas não foram entregues: cartas e cadernos inteiros... Quantas fotos e textos escondidos para que eu não tivesse recaídas. Tantos porres e cigarros, tantos sonos perdidos e tantos sóis eu vi nascer pensando onde tu estavas. Tantas ligações recusadas, tanto medo de te encarar, tantas tentativas de te fazer parar em vão. Tanta vida sem ser vida... Ah, se eu soubesse... Não teria fugido tanto, não teria me maquiado tanto para esconder um sentimento que não mais existia.
Foi quando hoje eu tive a coragem. Hoje eu tive a coragem de te chamar, a coragem de te atender. Eu tive a coragem de te abrir as portas e de te ouvir. Hoje eu quis mais do que tudo saber como eu me sentiria. Hoje eu não tive medo de me machucar. Hoje eu quis olhar nos teus olhos novamente, quis sentir meu coração acelerado como tu costumava o deixar antes, quis saber das borboletas no estômago, quis saber se ainda haveria dor na barriga...
 A casa ainda cheirava a bebida e cigarro, vestígios da vida desregrada que tu me deixaste como opção. Havia poucos móveis, quase nenhuma bagunça. O banho rápido, os dedos como pedras de gelo, o coração quase saindo pela boca e as pernas quase não se movendo de tão bambas. O interfone tocou, hesitei por alguns segundos, mas disse o que precisava ser dito “pode subir”.
Tu chegaste e tinha o mesmo semblante de sempre, só que desta vez, envergonhado, o que é raro de se observar em ti. Engraçado, não consegui achar o teu sorriso bonito como antes. E o que foi aquela tentativa de abraço? Desculpe, eu tive que rir. Tentei buscar nas minhas lembranças, qualquer coisa que te fizesse sentir mais a vontade... Foi nessa hora que eu me dei conta de que não havia mais nenhum dos pedaços que tu deixaste dentro de mim. Também não me lembro de quando consegui tirar tudo, mas agora eu sei que os tirei. E mais do que isso, eu não sei onde os coloquei...
Fiquei ali ouvindo as tuas histórias e me negando a responder as tuas perguntas que não me interessavam mais. Eu te olhava dos pés a cabeça, eu escutava o teu sotaque com atenção, como não me lembrava? Tu havia se tornado totalmente estranho para mim, como se em todos esses anos eu tivesse te recriado tantas vezes e tantas outras que tu, simplesmente, deixaste de existir. E deixar de existir não seria pior do que morrer? Sentimos falta dos mortos, temos dúvida de para onde eles vão e até sentimos saudades, mas e o que não existe? Simplesmente não existe, não é? Se não existe, é porque ninguém nunca o pensou e também é por que não há nada. É triste, eu sei. Mas também não consigo sentir remorsos dessa vez. Eu sinto uma pontinha de orgulho na verdade...
                 -Ficou louco? Perguntei assustada quando tu interrompeste meus pensamentos tentando me beijar...
                - Tu não sentes saudades? Não há um dia se quer que eu não me lembre de nós dois... Vamos tentar novamente.
                - Eu não quero! Pare com isso! Não quero... Simplesmente não quero...
                - Eu sei que quer...
               - Eu não quero. Não quero e tu vais ter que aceitar. Completei já esboçando um sorriso sagaz e debochado... Nem um pinguinho de vontade...
                - Mentira!
                - Eu estou curada, meu bem...
                - Eu era uma doença por acaso?
           - Mais do que só uma doença, era um câncer, mas estou totalmente curada... Então fui sem conseguir conter o sorriso abrir a porta para que tu pudesses sair de uma vez por todas da minha vida.