"Nunca é alto o preço a pagar pelo privilegio de pertencer a si mesmo." Nietzsche

ca(c)os

imagem via google
Eu pensei que esse dia nunca mais ia chegar para mim. O dia que me sentaria sozinha olhando para essa tela gelada e esses teclados empoeirados e escreveria. Não porque simplesmente quero. Mas porque preciso. Porque preciso botar para fora todo esse amontoado de coisas dentro de mim. Parece que com o tempo o espaço de armazenamento foi ficando maior e eu só fui só enfiando mais coisas. Eu não fazia ideia do tamanho da minha sacola, eu já nem sei o peso que ela tem. Mas sei que está se rasgando. Sabe, um dia desses eu consegui fechar as janelas. Quase não vaza nada por lá. E quando acontece é discreto. Por um descuido. Se confunde com embriaguez ou qualquer coisa normal. 
Mas a verdade é que meu corpo está se rasgando por todos os lugares. Não é mais só os olhos que deixa escapar detalhes. Meus braços e penas, meu tronco, meu rosto e cada pedaço da minha pele está se rasgando. Eu não consigo mais deixar qualquer coisa entrar. Eu não sei direito como deixar qualquer coisa sair. Eu estou remendando os buracos. Mas todo dia um novo buraco aparece. Eu sou como uma puta bomba relógio faltando poucos segundos para explodir. Presa em um corpo não muito grande, mas com um poder de causar desastres assustadores.
Eu costumava saber quem eu era.
Eu costumava ter orgulho de mim.
Eu havia me acostumado a sentir muito.
E agora, as vezes eu me pego torcendo para que qualquer pedaço desse meu tecido frágil, passe despercebido, e se rasgue de uma vez, que deixe explodir o mundo dentro de mim e acabe com tudo ou que me faça sangrar até morrer. Não porque eu desejo morrer. Mas porque talvez assim, eu pudesse abandonar esse corpo, como uma lagarta deixa para trás seu corpo antigo antes de virar borboleta. Não, eu também não acho que viraria borboleta. Mas talvez, sem tanto peso nas costas, ficasse mais fácil seguir mesmo estando bem próxima do chão. O medo me paralisou há um tempo. Eu vivo em um corpo tão frágil. Não posso mais deixar que nada entre. Eu sei que as vezes pareço egoísta. Mas, também sei que qualquer coisa a mais seria capaz de me rasgar por inteiro.
Infelizmente, parece que perdi o controle disso tudo. As pessoas transitam por aqui sem pedir muita licença. E vão embora sem olhar para trás sempre que descobrem que aqui dentro eu não dou festa todo dia como parece para quem só observa a fachada, desatento. Olhando daqui de dentro, acho que me pareço mais com um velho rabugento com raiva da vida por querer vive-la e viver com medo. A ele lhe deram muita vontade para um corpo quebrado, um coração maior do que pode carregar e uma cabeça que se expandiu mais do que a sanidade permite. Então, o pobre velho se limita a ficar quieto e pensar muito antes de agir. E, quanto mais ele pensa, mais seus membros ficam paralisados. E menos alguma coisa acontece.  
Eu queria não ter conhecido muita gente. Mas ainda assim, agradeço a todos por me mostrarem que não importa o quanto eu tente segurar a onda. Eu sempre vou acabar em pedaços tão pequenos que nunca vou conseguir consertar ou juntar tudo. Mesmo assim, eu busco um jeito de seguir mesmo que tenham levado pedaços meus, porque no fundo eu sei que a dor uma hora se transforma em poesia. Em um texto. Em um verso. Ou em mais uma ressaca qualquer até que não faça mais diferença alguma.

Metade - Adriana Calcanhoto